Há uma ligação forte do cinema de Margarida Cardoso às memórias coloniais portuguesas e, especificamente, com a história e o território moçambicanos.
Várias foram já as incursões da realizadora por esse domínio temático, quer no seu trabalho documental quer nos seus filmes de ficção, nomeadamente no mais célebre e mais conseguido, A Costa dos Murmúrios, de 2004, a partir do romance de Lídia Jorge. Yvone Kane, que é a sua primeira longa-metragem em praticamente dez anos, reata a relação – embora sem que o país seja nomeado, é Moçambique – num filme que não deixa de se ver com uma espécie de reflexo descarnado de A Costa dos Murmúrios (tal como este, protagonizado por Beatriz Batarda), como se, entre outras coisas, lhe removesse o élan romanesco para ficar com um movimento mais contemplativo e introspectivo, e partir ao encontro dos seus fantasmas.
Não se trata de reconstituição de época – o tempo é contemporâneo – mas, a partir da “protagonista ausente” que dá título ao filme (uma ex-revolucionária de destino incerto no período após a independência) ir reconstituindo, ao ritmo e aos modos de um filme-inquérito, o trajecto de um país africano de expressão ao longo dos quarenta anos que passaram desde a guerra e a descolonização.
Este é o fundo, o âmago do filme, dado por sinais, histórias pessoais relatadas pelas personagens que a protagonista encontra, episódios que saltam do limbo das memórias. No primeiro plano acaba por estar aquilo que corre menos bem – uma linha ficcional centrada na relação entre as personagens de Beatriz Batarda (uma jornalista portuguesa que volta a África espicaçada por uma dica sobre a tal Yvone Kane) e da sua mãe (a actriz brasileira Irene Ravache), que não voltou para Portugal e ficou em África depois do tempo colonial. Corre menos bem, dissemos, porque é relativamente desproporcionada a importância
dramatúrgica que lhe é conferida, bastante além do mero pretexto, do mero fil rouge, e a intensidade dela resultante. Falha aí alguma coisa, porque a generalidade das cenas com as duas redunda mais em tempos mortos, “intervalos”, do em algo de mais significativa. Isso aparece, sim, quando o filme olha em redor, e quando lança a sua protagonista na paisagem – os momentos mais fortes de Yvone Kane não dispensam essa componente “documental” integrada na ficção, e no limite vivem deles, na expressão concreta das ruínas de um modo de vida colonial (por aqui, sobretudo, passa a ideia de uma relação deliberada com A Costa dos Murmúrios), na sugestão do “feitiço” da natureza africana, na sinalização de todas as contradições que marcam hoje a vida e estruturas sociais dos países nascidos das ex-colónias portuguesas em África. É quando investe nesse poder de síntese evocativo, mais eloquente do que as palavras, os diálogos ou a intriga, que Yvone Kane melhor se consegue.